segunda-feira, 29 de setembro de 2008

José da Safra ou Jorge Carvalho David,

Informo, em primeira mão, que o texto em anexo acaba de obter o 2º. Prémio nos Jogos Florais 2008 da Alma Alentejana- Associação para o Desenvolvimento, Cooperação e Solidariedade Social, com sede no Laranjeiro / Almada. Esta Associação organiza, pela oitava vez, estes jogos florais em homenagem a um Alentejano ilustre, desta feita Kalidás Barreto, nascido em Montemor-o-Novo. Os prémios serão entregues no próximo dia 12 de Outubro em cerimónia que terá lugar na Sala Pablo Neruda / Fórum Romeo Correia em Almada a partir das 15 horas. Escolhi o pseudónimo, " José da Safra " por duas razões: - José, em Homenagem a meu pai que me deu o ser, Safra em homenagem à chamada "serra da Safra" que, desde que sou gente, me habituei a olhar defronte da janela.Dedico este prémio a todos os meus amigos!Um abraço fraterno.Jorge David



CINQUENTA PASSOS DE BALDIO

Desceu a calçada imperfeita , de pedra ribeirinha redonda e irregular, a um ritmo alucinante. Mais se assemelhava a um vendaval que parecia fazer rodopiar tudo o que encontrava ao redor. Um turbilhão de nervos e de raiva que bem se estampava no rosto.
Era a Baeta, olhos vivos e lancinantes, maçãs do rosto vermelhas que nem maçãs do São João. Um vermelho tão vermelho que mais se parecia com um farol feito de um emaranhado… Um novelo, de veias e capilares prontas para uma rotura gigantesca e desastrosa. - Essa cara tão corada ainda há-de um dia ser o teu fim, rapariga!... – Advertiam as vizinhas mais chegadas temendo o pior que, por ironia do destino, viria a acontecer em idade bem prematura… O acidente vascular fatal e irremediável.
Defronte da porta da taberna, disparou as primeiras rajadas de palavras contundentes e ameaçadoras:
- É preciso não terem vergonha na cara!
Abanou a cabeça por um lado e para o outro e prosseguiu:
- Aqui especados a “enxugar” copos de vinho enquanto aquele malandro já lá vai, serra fora, a abrir valado à frente de valado, e a plantar marcos de lomba em lomba. – É preciso não terem vergonha na cara!
Os homens, que se emparceiravam encostados ao comprido balcão de cimento da taberna, coberto de copos de” três”, uns cheios outros vazios, mais parecidos com um rebanho de ovelhas famintas debruçadas sobre a manjedoira, voltaram-se e aproximando-se do guarda-vento, uma espécie de meia porta encimada em bico, que resguardava do exterior a identidade dos fregueses mas lhes permitia, sempre que alguma manobra ou algo de estranho se passasse cá fora, dar uma mirada por cima, assim de soslaio, como quem não quer a coisa… a mulher de um que o vinha desencantar da desgraça, uma moçoila fogosa que passava no largo, enfim todas as coisas triviais que aguçavam o apetite à curiosidade destas almas de Deus. Desta vez espreitaram por cima do guarda-vento, não para apreciar trivialidades, motivos de chacota ou pernas roliças de cachopa mas, isso sim, para ouvir discurso bem mais sério e ameaçador que os deixou embaraçados, de venta ferrada no chão, perante uma verdadeira lição de coragem que a Baeta ali, mesmo nas suas caras, sem papas na língua, ia pronunciando.
- Metidos na taberna!… - Nem são homens nem são nada!
E, voltando as costas, lá foi subindo a calçada, resignada:
- Deixa-me lá calar antes que diga coisas que vocês não gostam de ouvir!
Era uma verdadeira mulher de armas esta Baeta. Defendia estas serranias como se das suas entranhas se tratasse, elas eram o útero, a origem do seu ser. A cada investida, a cada metro de baldio que tentassem ocupar, ela lá estava, na linha da frente, destemida e sem preconceitos. Nestas serranias, nestes baldios, guardou cabras e ovelhas, desde miúda, aqui roçou molhos e molhos de mato para a cama dos animais. A lenha para cozinhar e para aquecer o corpo e a alma nas noites infindáveis e frias do inverno era aqui recolhida, a pulso, nestas vertentes da serra, nestes baldios de todos e para todos e não terrenos sem dono como certos oportunistas, metidos a espertos, queriam fazer crer.
Mais uma vez, os baldios sofriam uma ameaça. Um tal de Buiça, cioso de teres e haveres a qualquer preço, lançava uma ofensiva para ocupar parte destes terrenos comunitários desde tempos ancestrais, propriedade de todos em geral, de toda a comunidade que deles usufruía e de onde retirava os bens essenciais à sua agricultura de quase subsistência, o pasto dos gados, a lenha e os matos. Mais uma vez a Baeta levantava a sua voz contra a injustiça, contra a tirania sem escrúpulos e sem respeito pelos valores mais sagrados desta gente serrana.
À porta da casa da Baeta, já ao fim da tarde, ao lusco-fusco, apinhou-se uma populaça, muitos homens e algumas mulheres. Os homens da taberna, de rabo entre – as - pernas, lá foram fazendo constar o sucedido, os gritos de alerta e conseguiram, num ápice, reunir esta gente. A Baeta, do alto da varanda de xisto, lançou o esperado grito de guerra:
- Aqui, à porta de casa, não se faz nada! - Amanhã, logo de manhã, à abertura da Câmara, é preciso esperar pelo presidente, antes de ele entrar, para saber o que pensa fazer desta pouca vergonha. Da Vergada da Loiça até ao Terreiro das Bruxas é só valados e marcos de pedra. Os pinheiros estão todos marcados à machada. É uma pouca vergonha o que se está a passar por essas serras.
O presidente da câmara era, ao mesmo tempo, um grande empresário laneiro, empregador da maioria destas gentes serranas, durante o dia operários têxteis e ao fim da tarde agricultores de uma lavoura de subsistência, pobre, muito pobre, que apenas dava para complementar o magro salário da indústria. No entanto, o presidente, por estratégia de interesses ou por conhecer o apego desta gente aos seus baldios, embora a contragosto, sempre procurava pôr um pouco de água na fervura quando se levantavam as fúrias destes povos.
Recebeu a delegação à porta da Câmara porque, esta turba, não tinha privilégios de pisar alcatifa de edilidade. Apesar de os receber na rua, conhecia-os a todos pelo nome e pelas alcunhas e não seria de bom tom confrontá-los assim, sem mais nem menos. Afinal todos eram seus empregados. Precisava deles cordatos, submissos e obedientes e, com palavrinhas mansas, lá foi levando a água ao seu moinho. Embora compreendesse as suas razões, aconselhava a que se acalmassem pois não poderia tolerar, a qualquer pretexto, manifestações à porta da câmara, isso nem pensar, era coisa que não mais voltaria a acontecer sob pena de consequências gravosas para os reclamantes. Manifestações é que não, ia argumentando o presidente, até que a Baeta, a ver passar o tempo com conversa fiada e nada de soluções visíveis, saltou a terreiro:
- Senhor presidente, não sei o que é essa coisa de manifestações nem estou interessada em saber. O que nos interessa é o que nos traz aqui, e o que nos traz aqui são os nossos baldios que a toda a hora estão a ser roubados sem que ninguém veja ou queira ver, sem haver alguém de poder que levante a voz. - Senhor presidente, a “senhora câmara” tem que ter uma palavra a dizer, antes que o povo se levante!
O presidente, denotando já alguma irritação, foi dizendo que não tinha medo de ameaças, contudo iria marcar um dia para, no local e em pessoa, tomar conhecimento da situação e ajuizar das medidas a tomar a contento das partes em litígio.
- É melhor que marque já o dia, senhor presidente, não vá isto ficar no rol dos esquecidos!
- Não marco a data, isso não marco, mas posso garantir-vos que o assunto não vai ficar no esquecimento! – Assegurou o presidente.
O dia da diligência lá foi indicado e todos compareceram no largo da aldeia. Subiram, serra fora, até ao Terreiro das Bruxas. De um lado os representantes da população, três homens ali mesmo indicados por todos e a Baeta. Do outro, o Buiça, esgrimindo os seus argumentos e mostrando documento atrás de documento. – Estão aqui os registos da matriz, aqui na minha mão, isto é meu! – Argumentava em sua defesa.
O presidente, ouviu as partes, ouviu de um lado… Ouviu do outro, e propôs a solução que lhe parecia mais razoável. Também achava que aquilo era um exagero, mas que no entanto não se deviam cortar as unhas rentes. Afinal o homem sempre apresentava alguns documentos e… Papéis são papéis. Vai-se medir aqui uma área para além do que vocês dizem serem a estremas do homem porque, afinal, o melhor é não haver guerras – disse o presidente – e o restante continua a ser baldio.
Para “ instrumento de medida”, o presidente escolheu o “Gato”. Alto, de perna comprida, lá foi medindo, passo a passo o terreno, até chegar aos cinquenta passos sentenciados pelo presidente. Não obstante qualquer das partes estivesse de acordo, a demanda estava sanada. De nada valia reclamar, porque voz de presidente é voz de presidente.
- Se outro houvesse com a pata mais comprida não era o Gato que media o terreno. Isso vos afianço eu! – Exclamou a Baeta em desacordo com esta cedência de cinquenta passos de terreno - Vamos lá a saber quem será o próximo escolhido para a medição. Se tiver pernas mais compridas bem ficamos sem baldio.

José da Safra

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