segunda-feira, 7 de abril de 2008

"Jorge Carvalho David" - Pesquisa Google

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Roberto Soldado Esperto

Foi uma tragédia... Uma verdadeira tragédia que se abateu sobre a freguesia e seus arredores.
Um marido, à primeira vista sem causa nem motivo aparente, desfechou à queima roupa, dois tiros de caçadeira no corpo da mulher que, num ápice, tombou morta no chão. O marido suicida, consumado este gesto tresloucado, ingere uma dose fatal de veneno destinado a matar o escaravelho da batata e sem apelo nem agravo, também ele encontra o caminho da morte procurando saldar, desta forma, o acto covarde que acabava de praticar. Dois mortos, assim de uma assentada e em circunstâncias tão dramáticas, sempre mexem, quer se queira quer não, com a quietude de uma pacata povoação de província, onde todos se conhecem, e onde a vida de todos por todos é conhecida. É assim nestas pequenas aldeias das beiras onde as pessoas só não se assumem como um colectivo da mesma família para não correrem o risco de estar a praticar actos incestuosos, vizinho com vizinha e vizinha com vizinho a toda a hora e instante. Todos, caso não sejam irmãos, são primos ou, na pior das hipóteses parentes até à quinta geração.

Por muito horrendo que tenha sido o crime, os vizinhos sempre se compadecem e não faltam às cerimónias fúnebres como manda a tradição e as boas maneiras nesta coisa de lidar com a morte.A morte é a morte, mesmo que provocada, acorrenta consigo um sentimento de dôr e de compaixão que não deixa ficar ninguém indiferente. Bem o diz a sabedoria do povo. A morte deixa sempre uma desculpa. Ele não era mau diabo, dava-se com toda a gente, era amigo do seu amigo, enfim... Chegado a defunto não se lhe conheciam desavenças, vinganças ou outros actos que pudessem manchar a sua reputação de bom vizinho. Apenas este acto tresloucado, praticado a coberto sabe-se lá de que razões, manchou a imagem de um pacato cidadão o que, contudo, não justifica que, ainda assim, seja abandonado ao acaso como um fauno sem préstimo na caminhada para a sua última morada.

O funeral foi marcado, dois dias depois, para meio da tarde de uma quarta-feira soalheira levando a supôr que até o tempo se quis associar a este branqueamento que o povo se esforçava por colar a esta tragédia como bem o demonstra a grande afluência de populares de todas as idades e condições.

O cortejo lá seguia o seu trajecto, pachorrentamente e em silêncio, apenas quebrado pelo ruído do calçado no alcatrão, e eis senão quando uma voz rompe esta fúnebre mudez:
- Esse que aí vai matou a mulher mas ao menos matou-se logo a seguir. Outros, mataram um filho e ainda por aí andam, a espreitar o sol!
Era o Roberto Soldado Esperto, já bem bebido para aquela hora do dia que largava semelhante atoarda.

Este Roberto era uma figura de pequena estatura, um meia leca, magro, de bigode que nunca pôde com uma gata p'lo rabo. Herdou esta alcunha de soldado esperto pelos vinte e poucos anos, pouco depois de ter assentado praça em Tomar. Soldado de poucos préstimos como viria a provar-se com uma intempestiva passagem à disponibilidade: - Não me queriam lá... Passaram-me à “peluda”- dizia ele – Mesmo assim, no pouco tempo que levou de tropa, fez história.

Chegou a uma sexta-feira à tarde, com a farda completamente em desalinho, botas desatacadas, blusão à tiracolo, gravata desapertada a abanar no fundo da barriga, boné dobrado a saltar do bolso das calças...

Esperou que o Zé dos Santos, o encarregado da resinagem chegasse do pinhal, e na sua linguagem “belfa”perguntou-lhe:
- Oh ti Jé! Voxemexé pode-me dar trabalho p'ra quinje dias? - Deram-me umas férias!...

- Olá! Há meia dúzia de dias na tropa e já com férias. Não seja por isso que não te dê
trabalho, mas a coisa está-me a cheirar a esturro!- Já podes vir amanhã!Respondeu o Zé dos Santos, vencido mas não convencido.

O Roberto lá trabalhou todo o sábado e recebeu logo féria do dia. Na segunda- feira, porém, já não teve igual sorte. Ao chegar ao quartel, designação que davam ao barracão onde cozinhavam e pernoitavam os resineiros, quase todos deslocados de casa durante largas semanas, deparou com o pior. Um gipe verde azeitona, descapotável, estacionara junto à porteira. Ao volante um militar. Fora do gipe, de pé, os outros três aguardavam havia já um bom par de horas.

- Quem é aqui o encarregado?

Perguntou um dos militares com ar de comando e divisas nos ombros.

- Sou eu mesmo, respondeu o Zé dos Santos com ar pouco intimidado. Atão o qué que vos traz por aqui? - Parece que até já adivinhei! Exclamou...

E tinha mesmo adivinhado, o Zé dos Santos. Vinham em busca do Roberto por ter abandonado o RI 15 de Tomar sem dar cavaco a ninguém. Uma folgazita e, ala que se faz tarde...
-És mesmo um soldado esperto. A culpa não foi tua não... A culpa foi minha que te dei trabalho e guarida!

A partir deste episódio o pobre do Roberto, algemado e atirado para a traseira do gipe ficaria baptizado para o resto dos seus dias: - Roberto” Soldado Esperto”.

E Roberto Soldado Esperto, apenas tendo assistido a um voltar de cabeças e um vozear surdo e comedido em ambas as filas do cortejo fúnebre, ficou de costas quentes e voltou a repetir a atoarda ainda mais alto e para que todos ouvissem bem:
- Esse que aí vai matou a mulher mas ao menos matou-se logo a seguir. Outros, mataram um
filho e ainda por aí andam, a espreitar o sol! Repetiu ipsis verbis o que antes já tivera dito.
À segunda foi de vez. O visado, destinatário daqueles desenquadrados comentários, seguia alguns metros à sua frente, na ala oposta. Realmente, há já alguns anos atrás, ele, o visado que na boca do ”Soldado Esperto” por ali se passeava ao sol, teria entrado em conflito com o filho, rapaz em idade casadoira, que por divergências relacionadas com escolhas de namorico descambaram em discussão e agressões mútuas que levaram pai e filho a vias de facto, e a envolver-se em desavença de tal ordem violenta que desembocou no disparo de um tiro que, para uns fora propositado, para outros acidental e que provocou a morte do mancebo ainda na flôr da idade.

O Roberto Soldado Esperto, dadas as circunstâncias e o contexto em que proferiu tais impropérios, não esperava, de forma alguma, que o alvo do seu comentário provocador reagisse tão inesperadamente. O primeiro murro apanhou-o de surpresa. O ofendido abandonou a ala em que seguia, atravessou a estrada e assentou um murro em cheio na cara do Soldado Esperto. A este seguiram-se um outro e mais outro, pontapé e bofetada sem conto. Uma tareia a sério e à antiga. O funeral parou para se assistir ao arraial de pancadaria, até que o homem da cruz, devoto da irmandade do santíssimo, embrulhado na opa lilaz que lhe encobria as nódoas do casaco cinzento já cansado de assistir a estas cerimónias, deu voz de comando perante a perplexidade do prior ainda atónito com o desenrolar dos factos que acabava de presenciar:

- O homem meteu o nariz onde não era chamado. Levou na tromba e foram bem merecidas. Só se perderam as que caíram no chão...

E voltando as costas ao cortejo, que aos poucos se ia reorganizando levantou a cruz até ao alcance dos braços e exclamou:

- Siga a procissão que o enterro já está estragado!

J. David
Fev.2008

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