terça-feira, 8 de abril de 2008

Conto de Jorge Carvalho David

1.

Baile na Freguesia do Focinho!


Foi pelo S. João!
A malta da escola não falava de outra coisa. Logo à noite vamos saltar as fogueiras do S. João. Eram os “vilaraitas” a planear a noitada no atlético recreativo mocidade do Vilar, os da Sapateira no seu centro recreativo cada grupo, em separado, planeava as suas peripécias antecipando nas suas mentes de meninos a paródia que os esperava. Os “vilaraitas” tinham fama de desordeiros, pouco sociáveis e até conflituosos. À vista de todos os outros, dos demais lugarinhos eram reputados de serem fracas rezes. Amiudadas vezes se envolviam conflitos que acabavam por descambar em autenticas batalhas campais onde tudo valia como arma desde as pedras certeiras a fisgas e outros arcabuzes improvisados. Assim que soava o grito de alarme: - Guerra aos vilaraitas, os dois bandos rivais iniciavam uma batalha sangrenta, primeiro de luta corpo a corpo e depois terminava com uma perseguição cerrada até encurralar o grupo mais fraco nas fronteiras do seu território. Por norma os vilaraitas saíam derrotadas nestas contendas. Não porque fossem mais fracos e menos astutos mas tão somente por se defrontarem com um exército de aliados, os da Sapateira, da Palheira e do Torgal em muito maior número quase sempre acabavam encurralados para lá do plome bem na fronteira do vilar, esfalfados e às vezes bem maltratados. Não raro o sangue escorria pelo cabelo cortado à escovinha em resultado de uma pedrada mais certeira.

As fogueiras de S. João eram um acontecimento tão importante que se sobrepunha a todas as tricas possíveis e imaginárias. Em campos separados, todos confluíam no imaginário de mais uma refrega sanjoanina, com baile para velhos e novos e fogueiras para a miudagem saltar.

Já sol posto, organizava eu a estratégia para a minha minha saída, porque nesta coisa de surtidas nocturnas, o plano tinha que ser meticulosamente delineado por forma a, sorrateiramente, sem dar nas vistas, desaparecer da esfera familiar, zarpar sem que alguém se apercebesse...e ao mínimo descuido, comprometesse toda a operação, e eis que um inesperado acidente de percurso complicou todos os meus planos. Os irmãos, mais novos, apercebendo-se da movimentação, não se me largaram mais das saias não me restando outro remédio que não fosse dar o meu assentimento a que me acompanhassem não obstante o do meio, ter marcada, para o dia seguinte, prova final da terceira classe. Vencida a sempre medonha quelha da serrada da palheira, com muros de pedra crua de ambos os lados, mais altas que a nossas cabeças, lá chegámos ao centro recreativo da sapateira, onde a animação já era grande. Folia e mais folia, o arraial prometia ir longe, e eis que o inesperado acontece. O meu avó paterno, na ausência de meu pai que viajara em negócios para a capital, assume as funções de guardião da ordem na prole e apresenta-se na sapateira em missão de resgate dos três foragidos meliantes. Quedou-se, de chapéu de feltro preto revirado em sinal de caso, de pé na entrada , única passagem disponível para o sala de baile que, como é norma na quadra, estava apinhada de gente. Os mais novos dançavam, no centro da sala, ao som dos tangos e valsas ranfonhas saídas de um gira-discos estafado, talvez oferecido por um distinto benemérito que, ficando bem na fotografia, se livrou de tamanho mono enquanto as mães que supostamente estariam de olho nas moças dormitavam em bancos corridos de pinho que circundavam a sala e os mais velhos beberricavam uns copos de vinho alvaraço da Louriceira que, a comparar com o vinho morangueiro da terra, era uma pinga de estalo, no” bufet ”, separado da sala de baile por um tapume em madeira com um pequeno postigo para o caixeiro poder observar o que se ia passando na sala. Foi desse postigo que saiu a voz de alerta: vinda do director de serviço ao balcão: - A sentinela está alerta e a porta é estreita. Bem escusado era tal aviso, por vir e destempo, no momento em que já se ensaiava uma saída rápida e certeira do recinto de festas. O meu avô, que não podia eternamente impedir a passagem dos que pretendiam entrar e sair, encostou-se ao tabuado que dividia a sala com o “buffet” enquanto eu e os incómodos acompanhantes nos íamos esgueirando lentamente pelos
quatro cantos da sala, em atropelo com pernas e xailes, numa ânsia desmedida de atingir a porta. Perto da porta, bastava olho aberto e ligeireza de perna para dar o salto para a rua e cem campo aberto difícil seria deixar-ase agarrar. O plano funcionou na perfeição. Eu, na pele de chefe de quadrilha era, como é obvio, o alvo primeiro a abater, estatuto que me valeu um rasgão na blusa e dois botões arrancados para assim escapar à mão de meu avô e consumar a fuga. No meio de tal confusão os companheiros de lide conseguiram escapar-se ainda antes de eu me libertar de tais apertos. Foi uma corrida sem tréguas, quais cavalos a toque de chicote, até à cerejeira da encruzilhada. Era o ponto de paragem não só em horas de aflição mas ainda em outras ocasiões bem mais calmas se fazia uma pausa na caminhada de ida e volta da escola do Bolo. O tempo para descanso do guerreiro foi mal calculado, e com a chegada de meu avô logo os apuros recomeçaram com nova corrida até a casa. Aí esperava-nos a pior das surpresas, minha mãe ciosa dos pergaminhos de substituta do homem da casa, redobrou-se em cuidados. Pai fora de casa, fuga colectiva, irmão do meio com prova da terceira classe, irmão mais novo acabado de perder o estatuto de bebe, incomodar o sogro para a diligência... Enfim, um monte de trabalhos que num tribunal a sério seria certamente apelidado de cúmulo jurídico o qual merecia – e mereceu – sentença adequada e castigo a condizer.

A gritaria foi de tal ordem ,fosse pela dureza do castigo, fosse pelo sentimento de culpa, que se ouviu lá para os lados da singraleira. No dia seguinte, a caminho da escola, o Constantino Adriano sai-nos a terreiro exclamando:

- Pl'o toque da música ,ontem houve baile na freguesia do focinho!

Jorge Carvalho David

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